quarta-feira, 23 de março de 2016

UMA VOLTA DE BICICLETA POR UMA VOLTA DE CACHORRO

Como dizemos aqui na Bahia, menino tem é arte! Durante a infância e adolescência de meus filhos passamos vários períodos de suas férias na cidade de Saubara, terra da região de meus ancestrais maternos. Lá, sempre alugávamos uma casa simples só para passar as férias e não incomodar os parentes. Na primeira vez que fomos pudemos finalmente realizar um grande sonho de minhas, então crianças, que era terem suas bicicletas. Nos lugares onde havíamos morado em Salvador, até aquele momento, não oferecia segurança para eles terem as suas porque, ou era muito movimentado, ou era em ladeiras íngremes. E foi assim que conseguimos um longo período de férias e levamos suas primeiras bicicletas. Foi com muita alegria que eles viram o pai chegar de ônibus e saltar na praça da cidade com as maravilhas já prontinhas para uso. Ao retirá-las do bagageiro a euforia foi total.

Quando constatei que eles já dominavam suas máquinas deixei-os mais à vontade. Mas houve um dia que tomei um susto daqueles. Quando estava de volta de uma visita aos nossos parentes encontrei no caminho um garoto com uma das bicicletas que eu reconheci ser uma das nossas. Fui para casa e, no trajeto, em outra rua, encontrei meu menino mais velho passeando com um cachorro preso à coleira. Fiquei admirada com aquilo. Perguntei-lhe o que estava acontecendo e ele, tranquilamente, me confessou que mais que ter uma bicicleta seu sonho maior era ter um cachorro, e que ele preferira trocar algumas voltas de bicicleta por algumas voltas de cachorro. Achou alguém que gostou da troca...

O que é realmente importante para cada um de nós? Será que alguém realmente sabe? Me dá agonia quando ouço alguém dizer que conhece fulano como a palma de sua mão. Será que conhece mesmo? No livro de Jeremias 17: 9-10 temos: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá? Eu, o Senhor, esquadrinho o coração e provo os rins; e isto para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo o fruto das suas ações.”


Não conhecemos ninguém de forma a não deixar nenhuma dúvida sobre seus desejos e sobre seu verdadeiro caráter. Aprendi isso de forma simples quando vi meu filho preferir dar voltas com um cão sem nenhum pedigree a dar voltas em uma bicicleta de razoável valor. Porque para ele, naquele momento, mais valia a amizade de um cão do que a velocidade e as maravilhosas piruetas que sua engenhoca poderia lhe proporcionar. E assim vamos virando nossas páginas pensando que conhecemos tudo e todos e, não conhecendo, absolutamente, nada e ninguém!

terça-feira, 22 de março de 2016

VAIDADE ANTIPATRIÓTICA

Tudo certo que iríamos para Montevidéu, mas meu filho resolveu seguir conselho de amigos e optar por conhecer Colônia Del Sacramento. Disseram a ele que  lá teríamos mais coisas interessantes para ver. Saímos da cidade portenha de Buenos Aires e atravessamos o Rio Prata em uma embarcação tipo ferry. O passeio não foi dos mais agradáveis. Pelo menos para mim que tenho mania de comparar tudo com o Brasil e no fim sempre achar que temos lugares mais bonitos que aqueles em que estamos naquele momento. Não foi diferente naquele local, e isso  meus companheiros de viagem não aceitavam.

Bem, lá se fomos nós. Na hora do almoço todos acomodados em um ônibus a serviço da excursão e eu, que vinha ao longo do percurso observando uma determinada componente do grupo que nunca conversava em nossa presença, cochichei com minha nora: “aquela ali é brasileira”. Minha nora olhou, olhou, e nada de concordar comigo. “Não é não Bel, como é que você sabe? Ela nem abre a boca.” Então eu lhe confirmei: Não abre a boca quando está perto de nós. Ela Não quer se identificar como brasileira.

E assim o ônibus partiu. Quando chegamos ao nosso destino, onde iríamos escolher o lugar para almoçar, a “brasilenha” não resistiu ao nosso olhar de indagação e arriscou em espanhol: “Buenas tardes”, ao que lhe respondi: “Boa tarde!” Sem graça ela replicou: “Ah, brasileiros?” Respondemos afirmativamente e cada um seguiu seu caminho. Mas antes de ir ela fez questão de frisar sua identidade regional especificando com ar de orgulho o estado do Brasil de onde ela provinha.

Em um passado não muito distante alguns jogadores brasileiros já se queixaram de terem sido tratados com frieza e indiferença por seus companheiros conterrâneos ao ponto de, em campo, os compatriotas mais antigos no clube comunicarem-se entre si na língua local europeia excluindo, assim,  os brasileiros que chegaram por último.
Jesus enfrentou fariseus, saduceus e outros  seguidores de correntes doutrinárias que condenavam povos, oriundos de uma mesma nação e pertencentes a um único Deus, a uma eterna separação.

Hoje. Infelizmente, esse legado também  foi transferido para o cristianismo! E pensar que tudo, no final das contas, não passava e não passa de vaidade antipatriótica. Quanta bobagem! Achar que ao nos fingirmos de “diferentes” poderemos virar páginas sendo mais respeitados e amados por Cristo.

Quanta bobagem!


 Estamos todos no mesmo barco desde o princípio do mundo.

segunda-feira, 7 de março de 2016

AGARRE O QUE PUDER
Agarre o que puder! Essa era a sentença lá em casa no treinamento que recebíamos todos os dias, eu, Maria, a outra menina que minha tia criava, e Sandra, nossa vizinha, naqueles idos de 1966. Tratava-se de um programa da TV Itapoã que passava todas as tardes. O cenário era de Alecy; os brinquedos eram da  Estrela, maior fabricante do ramo antes da invasão chinesa no mercado. Como sou nostálgica sinto saudades daqueles tempos de ingenuidade acalentadora. Na hora do programa nossa casa ficava apinhada de “televizinhos” que vinham encher o centro da sala para aguardar o tão esperado momento. Apesar da ansiedade o silêncio era absoluto.

Era com muita emoção que abríamos as embalagens das pastas dentais Kolynos e preenchíamos-lhes os espaços internos com nomes e endereços e enviávamos para a TV. Depois aguardávamos ansiosamente sermos sorteados para ir buscar nossos prêmios. Aquele que era sorteado tinha que comparecer ao próximo programa e, em um tempo cronometrado, agarrar o que pudesse. Havia uma enorme quantidade de brinquedos organizados no palco. Minha tia nos treinava para irmos começando pelo que podíamos agarrar com as pernas. O tal treinamento consistia em enfiarmos as boias infladas em ambas as pernas e, depois, nos arrastarmos em direção aos outros brinquedos para colocarmos duas bonecas debaixo do braço. Por último, com as mãos ainda livres pegaríamos mais duas bonecas.  É sério, nós fomos bem treinadas... Mas nunca chegou o dia de colocarmos nosso treinamento em prática.

Bem, nunca fomos sorteadas. Todavia, para minha maior e mais completa alegria, hoje, faço treinamento da alma para amar cada vez mais ao meu próximo.  Enquanto isso, aguardo  aquele tão sonhado dia no qual pretendo me encontrar face a face com Cristo quando, então, poderei abraçá-lo sem necessidade de esperar por um sorteio. E então o amor, o eterno e mais puro amor, será a minha recompensa.  E assim eu não terei que esperar ansiosamente pelas tardes e manhãs para o recomeço de minha esperança de prêmios porque Ele, o maior Prêmio que alguém pode almejar, estará sempre ao meu lado reconfortando-me com estrelas de verdade e não em marcas de brinquedo. Agarre essa esperança você também, se assim o quiser... Agarre-a, mas agarre-a com toda força do seu ser. Agarre-a o quanto puder!

Como é gostoso virar páginas com essa esperança!

domingo, 6 de março de 2016

O GRUPO PERIGOSO DA BAHIA

Na obra “As relações de trabalho dos escravos de ganho e de aluguel na cidade de Salvador (1800-1822)”, de Maria Evilnardes Dantas Petrauskas, pesquisa realizada pela Pontífica Universidade Católica de São Paulo (Pós Graduação em História), tem a informação de que nessa fase Salvador contava com 65.000 habitantes assim divididos, conforme transcrição literal do texto de origem:

O primeiro grupo era formado pelos funcionários da administração real, os militares de altas patentes, o alto clero secular e regular, os grandes mercadores e os proprietários de terras, que compunham a chamada elite da sociedade baiana famintas de distinções e honrarias, com rendimentos anuais superiores a 1.000$000 réis, e que aspiravam títulos de nobreza distribuídos pelo governo imperial a partir de 1822.

O segundo grupo era constituído por funcionários médios da administração real, militares e oficiais de patentes inferiores, o clero secular e regular, os comerciantes varejistas, proprietários rurais, fazendeiros ou criadores médios, profissionais liberais, os homens que viviam de seus rendimentos anuais e os mestres de ofícios nobres.

No terceiro grupo estavam os funcionários subalternos da administração real, militares, profissionais liberais secundários, oficiais mecânicos e pequenos comerciantes do comércio de frutas, doces e salgados composto em sua maioria por homens recém-egressos da escravidão.

Finalmente, o quarto grupo composto pelos escravos, mendigos e vagabundos que constituíam o “grupo perigoso da Bahia” no início do século XIX e até 1860 mais ou menos. O texto ainda informa que houve uma evolução do comportamento social que pelo qual, em dado momento, “o processo de purificação obriga o mestiço a desejar integrar-se na procura de uma forma de aproximar-se o mais possível dos tipos e vida da cultura branca (pg.38), para apropriar-se desse povo, ou dessa sociedade branca no que rompe todos os laços com seu grupo de origem.

De nada adiantou tanta tentativa de aproximação. Ainda somos confundidos com gente perigosa. Não foi uma vez nem duas que ao me aproximar de algumas senhoras em determinadas lojas senti que elas instintivamente colocaram suas bolsas para frente como para se precaver de “gente perigosa”.

Mas vamos vivendo e virando nossas páginas enfrentando essas lutas e batalhas porque de qualquer maneira, viver é muito perigoso, seja na pele de um negro, ou, de outra raça qualquer. Nosso risco só se torna maior pelo desagravo que corremos de estarmos volta e meia sendo confundidos com “gente perigosa”.


E assim vamos virando nossas  páginas permeando-as com esses infortúnios onde a única coisa que nos alivia é a certeza de  que temos um Deus que cuida de nós.