sexta-feira, 19 de junho de 2015

TERRA DOS OUTROS É TERRA DE NINGUÉM

Passamos muitas dificuldades em Ibicaraí. Terra dos outros é terra de ninguém. A princípio ninguém confia em você; ninguém lhe abre portas; ninguém se achega a você, assim, do nada. Ainda mais no interior onde sobrenome e ascendência familiar são mais importantes e os preconceitos imperam, sejam eles sociais ou raciais. Este último principalmente. As famílias, então, têm elos intermináveis.  Chegamos a Ibicaraí em março de 1987. Como eu era uma estranha no ninho, para fazer contatos, dependia de meu esposo que era mais popular. Principalmente por fazer parte da turma que se reunia frequentemente para colocar em dia seus hábitos etílicos. Isso me perseguiu sobremaneira. Com a carga horária super reduzida em seu emprego público como professor o tempo  que lhe  sobrava era também o seu algoz. Mesmo assim, por sua multicompetência em esportes conseguiu lugar como técnico da seleção de futebol da cidade enquanto a faculdade onde foi dar aula não inaugurava. Como nunca abri mão de dar educação de qualidade aos meus filhos, mesmo com todo sacrifício matriculei-os na Escola Adventista da cidade. Também consegui uma bolsa em um curso de inglês para minha filha então com seis anos.

Só em agosto daquele ano enxergamos uma luz no fim do túnel quando, em visita a colegas em Itabuna, meu esposo solicitou-lhes indicação para mim em uma escola de grande porte da cidade. Conseguida a entrevista fui dois dias depois do dia marcado. Primeiro precisava conseguir o dinheiro do transporte.  Engraçado, para não dizer triste, foi ouvir de alguém que assistiu àquela cena a frase de que “quem vencia na vida sob muita petição deixava para trás sempre um rastro de humilhação”. Falar é fácil...         Mesmo quem nasce em berço esplêndido precisa de alguém para alguma coisa nem que seja uma vez na vida.

Quando cheguei à escola a pessoa responsável pela biblioteca havia falecido e a direção já estava entrevistando candidatos sem formação na área. Fui contratada imediatamente e perdi a oportunidade de receber um salário ainda maior porque quando a contratante me perguntou sobre a minha pretensão salarial eu pedi  metade do que realmente pretendia pedir. Mas tarde ela me confessaria que me pagaria até o dobro porque a biblioteca abrigava dois acervos distintos e mais um memorial.                                                                     
A rotina era estressante. Se eu fosse pagar passagens de ida e volta diariamente, via rodoviária, metade do salário seria dispendido em deslocamento. Então eu me juntava aos moradores da cidade que trabalhavam ou estudavam em Itabuna ou Ilhéus e que ficavam todos os dias, a partir das cinco da manhã, na saída da cidade a espera de carona solidária. Assim, contava com a ajuda de moradores locais que ao passar iam “catando” os amigos.

Eu deveria chegar às oito da manhã em ponto no trabalho. A madre superiora não admitia atrasos o que eu às vezes não conseguia. Largar as onze e trinta para chegar às duas da tarde em Ibicaraí para trabalhar na Academia Superior de Educação Montenegro fazia de mim uma malabarista. Mesmo assim eu tinha o maior prazer de trabalhar nas duas cidades ao mesmo tempo. Aquilo me dava uma sensação indescritível de garra, força, fé e coragem. Apesar de todo o esforço e desprendimento que me era exigido vivi aquele momento profissional com muita intensidade. Foi uma grande oportunidade que Deus me deu. E aproveitei o máximo que pude. Tive que agir como um acrobata que não pode perder o segundo preciso de pegar no ar o balanço que lhe é atirado pelo outro acrobata nas apresentações circenses.

Entretanto, enquanto as coisas estavam começando a se acertar para mim, pelo menos do ponto de vista profissional, para meu esposo as coisas iam de mal a pior. A faculdade não saia do papel, o salário do estado mal dava para pagar as contas e, para desanimar ainda mais, uma jovem que eu havia levado de Salvador não quis mais saber de morar no interior. Voltou para capital e foi difícil encontrar alguém para substituí-la. Com o racismo evidente sempre me diziam: “Ninguém gosta de trabalhar para negro”. Houve um caso em que a profissional disse-me isto em pleno rosto. Que preferia ganhar menos com outra família por ter vergonha de trabalhar para negros.

Em dezembro de 1988, um ano e quatro meses depois de contratada fui demitida da Ação Fraternal. Não consegui levar adiante o fator assiduidade. Era muito cansativo e temia deixar meus filhos sozinhos com pessoas estranhas. Não tínhamos nenhum parente por perto para acompanhá-los e ainda tinha um agravante. Minha filha, então com sete anos, chorava demais quando eu saia. Cansei de voltar do caminho, pois eu não aguentava ouvir-lhe os gritos: “Socorro minha mãe, pelo amor de Deus não me deixe.” Que mãe aguentaria. Tivemos até um convite para a Bélgica onde meu esposo teria a chance de trabalhar como preparador físico, mas não deixei que ele levasse a ideia adiante. Tive medo de me jogar sozinha com três crianças pelo mundo a fora. Digo sozinha porque nessas empreitadas da vida a mulher é quem sempre sobra.  Sobrar no interior da Bahia era uma coisa, agora na Europa eu não quis pagar para ver. E não me arrependo, sinceramente. Permanecemos em Ibicaraí até março de 1989. Foram dois anos cravados. Ainda cheguei a aceitar um convite para trabalhar na Biblioteca Municipal do Espaço Cultural de Itabuna (fevereiro de 1989), mas só fui durante quinze dias porque então aconteceu algo maravilhoso em minha vida que iria me ajudar a virar, rapidamente, mais uma página...



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